Por Hamilton Roschel, coordenador do grupo de pesquisa em Fisiologia Aplicada e Nutrição da Escola de Educação Física e Esporte e da Faculdade de Medicina da USP
Ah, o café!
Do aroma que preenche a cozinha ao calor reconfortante da xícara entre as mãos, aquele primeiro gole que parece despertar cada célula do nosso corpo faz desse ritual matinal algo tão essencial quanto o próprio ato de respirar… Para milhões de brasileiros, a vida sem café seria como um samba sem cuíca: tecnicamente possível, mas algo estaria fundamentalmente errado.
Mas como toda relação de amor intensa, essa também já teve seus momentos de crise e desconfiança. Lembra quando diziam que café dava úlcera? Ou que aumentava a pressão arterial a níveis estratosféricos? E, talvez o mais assustador de todos os rumores: que poderia causar câncer? Pois é, durante décadas, nossa bebida nacional viveu sob a sombra da suspeita oncológica, como aquele vizinho estranho de quem todos desconfiam, mas que contra o qual ninguém tem provas concretas.
A história dessa desconfiança tem data marcada. Em 1991, a Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc), braço da Organização Mundial da Saúde para assuntos oncológicos, classificou o café como “possivelmente carcinogênico para humanos”. Era como se nosso amigo de todas as manhãs tivesse recebido uma ficha criminal. O motivo? Alguns estudos da época sugeriam uma possível ligação com câncer de bexiga.
Mas, como em toda boa história de redenção, o tempo (e a ciência de melhor qualidade) tratou de limpar o nome do nosso estimado protagonista. Vamos entender como essa reviravolta aconteceu e o que realmente sabemos hoje sobre café e câncer.
Aqueles primeiros estudos que levantaram suspeitas sobre o café tinham problemas metodológicos sérios. Eram principalmente estudos caso-controle, que comparam pessoas que já têm câncer com pessoas saudáveis, perguntando sobre seus hábitos passados. O problema? Nossa memória é falha e tendenciosa, especialmente quando estamos doentes e tentando entender “por que eu?”.
Com o tempo, pesquisas mais robustas entraram em cena: os estudos prospectivos, que acompanham pessoas saudáveis por anos ou décadas, registrando seus hábitos em tempo real e observando quem desenvolve doenças. É como a diferença entre perguntar a alguém “o que você comeu nos últimos dez anos?” e acompanhar regularmente o cardápio dessa pessoa durante uma década. Resta seguro dizer qual método é mais confiável, não?
E o que esses estudos melhores nos mostraram? Uma reviravolta digna de novela das nove: em vez de aumentar o risco de câncer, o consumo de café estava associado a um risco menor para vários tipos de tumores.
Os números são impressionantes. Análises combinando dezenas de estudos mostram que os bebedores de café têm, em média, um risco aproximadamente 18% menor de desenvolver qualquer tipo de câncer quando comparados aos abstêmios da bebida. E para alguns tipos específicos de tumores, a proteção parece ainda mais significativa.
O câncer de fígado, por exemplo, tem uma relação quase linear com o café: quanto mais xícaras por dia, menor o risco. Pessoas que tomam três a quatro xícaras diárias têm aproximadamente 40% menos chance de desenvolver esse tipo de tumor. Para o câncer de endométrio a proteção também é substancial. Para outros tipos comuns, como câncer colorretal, de próstata e de pele, os estudos mostram efeitos protetores mais modestos ou, em alguns casos, nenhuma associação clara, o que, convenhamos, já é uma ótima notícia considerando a suspeita inicial.
A reviravolta foi tão dramática que, em 2016, a mesma Iarc que havia colocado o café na lista de suspeitos voltou atrás e retirou a classificação de “possivelmente carcinogênico”. Foi como uma retratação pública: “Desculpe, café, parece que cometemos um engano”.
Aqui a história fica ainda mais interessante. O café não é apenas cafeína dissolvida em água quente. É uma das bebidas mais quimicamente complexas que consumimos, contendo uma grande variedade de compostos diferentes, muitos deles com propriedades biológicas bastante potentes. Os polifenóis e outros antioxidantes presentes no café podem ajudar a combater o estresse oxidativo e a inflamação crônica, dois processos intimamente ligados ao desenvolvimento de tumores. Compostos como os ácidos clorogênicos podem influenciar a expressão de genes relacionados ao câncer e melhorar a sensibilidade à insulina. A própria cafeína, em si, parece ter efeitos antiproliferativos em algumas células cancerígenas.
No caso específico do fígado, o café parece melhorar a função hepática e reduzir a fibrose (cicatrização), criando um ambiente menos propício para o desenvolvimento de tumores. Considerando que o fígado é nossa central de desintoxicação, não é de surpreender que ele agradeça por essa ajuda extra.
Antes que você decida aumentar seu consumo para níveis exorbitantes, algumas ressalvas são necessárias. Primeiro, a temperatura importa, e muito. Bebidas muito quentes podem aumentar o risco de câncer de esôfago devido ao dano térmico repetido ao tecido. Isso vale para qualquer líquido, seja café, chá ou chimarrão. Então, aquela pausa para esfriar um pouco a bebida não é apenas para evitar queimar a língua, mas também uma medida preventiva contra o câncer.
Segundo, embora o café descafeinado também mostre alguns efeitos protetores, os benefícios parecem ser mais pronunciados com o café tradicional, com cafeína. Isso sugere que, embora outros compostos do café sejam importantes, a cafeína pode ter seu próprio papel nessa história.
Terceiro, durante a gravidez, a moderação continua sendo a palavra de ordem. Estudos associam o consumo elevado de cafeína ao baixo peso ao nascer, e as recomendações atuais sugerem limitar a ingestão da bebida.
Finalmente, é importante deixar claro que o café (como qualquer outro alimento) não é uma poção mágica anticâncer, mas parte de um estilo de vida que pode, e deve (na medida do possível), incluir outros hábitos saudáveis. Os bebedores de café também podem se exercitar mais, não fumar, manter uma alimentação saudável e ter outros comportamentos que influenciam o risco de câncer. Portanto, equilíbrio continua sendo uma boa ideia. Os benefícios mais consistentes são observados com consumo de três a quatro xícaras por dia. Além disso, efeitos colaterais como ansiedade, insônia e problemas digestivos podem aparecer com consumo excessivo.
Então, da próxima vez que alguém olhar com desconfiança para sua xícara de café, você pode compartilhar essa história de redenção científica. Nosso companheiro de todas as manhãs não só foi inocentado das acusações, como ganhou uma medalha de honra por serviços prestados à saúde pública.
Como em tantas áreas da nutrição e da saúde, a história do café nos ensina que a ciência é um processo contínuo, e nossas certezas de hoje podem ser revisadas amanhã – não por capricho ou incompetência, mas porque assim funciona o avanço do conhecimento.
Por enquanto, parece que podemos continuar desfrutando de nosso ritual matinal não apenas com prazer, mas também com a tranquilidade de saber que, além de despertar nossos neurônios, aquela xícara fumegante pode estar fazendo mais bem ao nosso corpo do que imaginávamos.
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