Desde que a atriz e produtora Silvia Buarque divulgou a peça “A menina escorrendo dos olhos da mãe”, soube que o texto me comoveria. Quando minha mãe adoeceu, em 2012, desejei que fôssemos distantes. Comecei a imaginar que romper vínculos familiares cedo seria a única forma de diminuir a dor de perdas tão grandes.
Isso durou pouco. Logo entendi que muita gente vai passar a vida inteira procurando amores que causem dores desse tamanho. Passei a prestar mais atenção no luto por pessoa viva que tanta gente enfrenta.
Em “A menina escorrendo dos olhos da mãe”, da dramaturga e escritora Daniela Pereira de Carvalho, mãe e filha (Guida Vianna e Silvia Buarque) tentam se reaproximar depois de décadas de afastamento.
Morte sem Tabu: Você está em turnê com a “A menina escorrendo dos olhos da mãe”, que recebeu três indicações no prêmio APTR 2025. A peça traz dois temas muito importantes, o aborto e o amor homoafetivo. Como a arte pode nos ajudar a combater o preconceito e a desinformação em um momento de tanto retrocesso conservador?
Daniela Pereira de Carvalho: Acho que a arte, sendo um elemento da cultura e da história, além de uma obra estética, deve sempre ser um refúgio do pensamento crítico, um meio de reflexão e, portanto, também um enfrentamento constante aos preconceitos. Realmente, estamos passando, no Brasil e no mundo, por um momento onde o conservadorismo reage fortemente às mudanças progressistas que ganharam espaço, no campo do feminismo e do combate ao racismo e à homofobia, por exemplo. “A menina escorrendo dos olhos da mãe” não é uma obra panfletária —embora, eu veja muito valor em obras panfletárias. Mas não é o caso dessa peça. É uma dramaturgia ficcional, bastante apoiada na emoção e que sustenta um pensamento crítico. Pelo menos, foi isso que tentei fazer.
Morte sem Tabu: Não é a primeira vez que a relação entre pais/mães e filhos/filhas é o assunto central das suas peças, com separações de diferentes ordens. É uma forma de processar o seu próprio luto?
Daniela Pereira de Carvalho: Na verdade, acho que as relações entre pai, mãe e filhos, entre irmãos, entre amigos, entre amores românticos são temas muito universais, que aparecem nas obras da maioria dos autores. Eu tinha 5 anos quando a minha mãe morreu. São anos dos quais tenho uma vaga lembrança. Quando ficou doente, quando morreu, logo depois da sua morte… É tudo um borrão na minha memória — uma defesa psicológica, provavelmente. Acho que vivi o luto mesmo, anos depois, quando meu pai ficou doente. Aí sim, tive uma reação depressiva muito forte —a psicanálise foi fundamental para entender que estava revivendo, na iminência da perda do meu pai, o pavor infantil que senti ao perder minha mãe. Já tinha quase 40 anos, foi bem complexo, mas encontrei mecanismos de elaboração. Sinto falta de ter conhecido a minha mãe, Luíza, e tenho muita curiosidade, queria ter convivido mais com ela. Entretanto, tive figuras maternas que foram muito importantes, minhas avós, minha tia Dilma que me criou, algumas professoras, como a Tania Brandão, que chamo de mestra-mãe, a Xuxa Lopes, que é uma amiga muito maternal, muito maravilhosa.
Não escrevo para processar meu luto. Acho que nunca escrevi por esse motivo. Escrevo para estar viva nesse mundo louco! Não escrevo com dor, escrevo com prazer, escrevo coisas que penso serem relevantes e bonitas. A minha mãe, por mais que a tenha conhecido muito pouco, nunca foi uma ausência na minha vida —ela está presente em mim. No meu rosto, no que ela me deixou material e intelectualmente. Dizem que falo alto como ela! Alguns amigos e ex-alunos me contam coisas, acham que somos parecidas. Isso é uma presença. Tenho 47 anos, já são 42 sem ela. Não estou de luto pela minha mãe, se não estaria de luto pela minha vida. E eu gosto da vida, cheia de som e fúria como ela é.
Morte sem Tabu: Eu achei interessante que, numa publicação em sua rede social, você fala sobre fantasiar como sua mãe te veria. Existem conversas imaginárias com ela?
Daniela Pereira de Carvalho: A personagem Elisa, de “A menina escorrendo dos olhos da mãe”, tem conversas imaginárias com a mãe dela, mas eu não tenho. Muito provavelmente, porque conheci minha mãe muito pouco. Minha mãe, em alguma medida, é inteiramente imaginária para mim. Faço escolhas. Escolho não imaginar a minha mãe sendo conservadora, por exemplo, reagindo com violência aos amores da minha vida. Como não pude conviver com a minha mãe, escolho dar a ela, à minha ideia dela, uma chance de ser bacanérrima! Sempre imagino que teria orgulho de mim por ser dramaturga e que não veria problema na minha bissexualidade.
Morte sem Tabu: Você está escrevendo uma peça agora? Existe algum tema que você quer muito abordar no teatro?
Daniela Pereira de Carvalho: Existem muitos temas que quero abordar! Quero viver mais 47 anos, só para continuar escrevendo! Vamos ver… Acabei de estrear uma peça, “Pedrinhas Miudinhas”, uma dramaturgia que costura vários textos do Luiz Antonio Simas, foram meses de mergulho nos livros dele —muito interessante. Agora, estava começando a pensar no que escrever, aí aconteceu uma coisa engraçada… Li uma matéria no Globo e pensei, “Ah! Isso pode dar uma peça!”. Umas horas depois, Ana Beatriz Nogueira, minha amiga querida e atriz extraordinária, me mandou uma mensagem com um print da matéria, dizendo “Isso dá uma peça!”. É o que quero começar a escrever. Uma peça sobre amor, sobre o fim do amor, os pontos de vistas diferentes entre duas pessoas que compartilharam o amor. Estou no comecinho da gravidez dessa peça.