‘Menopausa não é decreto do fim da vida sexual’, diz psiquiatra e sexóloga Carmita Abdo – Instituto de Psiquiatria – IPq

"Ainda persiste uma ideia muito antiga e, infelizmente, bastante enraizada de que sexo e reprodução andam juntos", diz Carmita

Quando o assunto é menopausa, a conversa quase sempre se limita aos famosos calores, insônia e oscilações de humor. Mas pouco se fala sobre o desejo sexual — ou, muitas vezes, a ausência dele — nessa etapa da vida. “A sociedade nos educa para associar a sexualidade feminina quase exclusivamente à reprodução”, afirma a psiquiatra Carmita Abdo, professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e uma das principais sexólogas do País.

Essa lógica, embora ultrapassada, ainda pesa. E um dos principais motivos é que temos, historicamente, pouco tempo de convivência com mulheres na menopausa. “As mulheres morriam antes disso”, observa Carmita. “Então, a medicina precisa, cada vez mais, se aprofundar no estudo dessas mulheres que vivem 60, 70, 80, até 100 anos.”

Paralelamente, essa etapa da vida — marcada pela cessação definitiva das menstruações, marcando o fim da fase reprodutiva — está longe de ser simples. “Não dá para reduzir o desejo à presença ou ausência de hormônio”, afirma a especialista. Segundo ela, embora as flutuações hormonais da menopausa realmente impactem o funcionamento do corpo, o desejo sexual é construído por uma série de fatores emocionais, culturais, relacionais e até sociais.

“Se ela não tem vontade, será que é mesmo por ausência de desejo ou por conta da pressão que sofre? Muitas vezes, a mulher está tão sobrecarregada — seja por questões familiares, trabalho ou conflitos amorosos — que não sobra espaço para o prazer”, observa. “A disfunção sexual precisa, sim, entrar em discussão. Mas ela nem sempre será a protagonista. Tem mulher que acha que perdeu o desejo, mas, na verdade, está em um relacionamento que já não faz mais sentido. Não é que ela não quer transar — ela não quer transar com aquela pessoa.”

Nesse contexto, há até quem agradeça a perda de interesse. Afinal, se ele não existe, também deixa de ser uma preocupação. Por outro lado, Carmita lembra que “essa fase da vida é só a metade da história”. “O que ela vai fazer da outra metade sem vínculo, sem erotismo, sem prazer? Claro que a mulher tem todo o direito de não querer mais — e isso precisa ser respeitado. É legítimo. Mas essa decisão precisa vir dela, e não de um processo biológico mal compreendido, nem de uma imposição social.”

Conversamos com Carmita sobre os impactos da menopausa no desejo sexual feminino, os desafios afetivos dessa etapa e o que ainda falta discutir sobre o prazer na maturidade. Veja os principais trechos:

Por que é tão importante falar sobre a vida sexual das mulheres na menopausa e no pós-menopausa?

Ainda persiste uma ideia muito antiga e, infelizmente, bastante enraizada de que sexo e reprodução andam juntos. Ou seja, quando a mulher chega à menopausa, há quase um decreto “silencioso” de que a vida sexual dela terminou ou está em vias de terminar.

Com isso, algumas pessoas se questionam: “Por que falar de sexualidade com uma mulher que já criou os filhos, que não vai mais engravidar?”. Mas essa é uma visão muito limitada. Sexo vai muito além da reprodução. Sexo é prazer, é relaxamento, é intimidade, é vínculo. E quando tiramos esse aspecto da vida da mulher, tiramos também oportunidades de bem-estar, de conexão com o outro e até de autoconhecimento.

Mas muitas mulheres se veem desencorajadas a buscar essa vida sexual, especialmente durante e após a menopausa, não?

Sim. E, muitas vezes, quando elas buscam ajuda, é porque o parceiro ainda deseja manter a vida sexual ativa. Ou seja, não é necessariamente por um desejo próprio. Ainda falta esse movimento de reconexão com o próprio corpo e com os próprios desejos, algo que precisa ser incentivado e reconhecido pelas mulheres também.

“Ainda persiste uma ideia muito antiga e, infelizmente, bastante enraizada de que sexo e reprodução andam juntos”, diz Carmita Foto: Léo Souza/Estadão

Tem mulheres que até pensam: “Se eu não tenho vontade, que bom, menos uma preocupação”. Mas veja: essa fase da vida é só a metade da história dela. O que ela vai fazer da outra metade sem vínculo, sem erotismo, sem prazer? Claro que ela tem todo o direito de não querer mais — e isso precisa ser respeitado. É legítimo. Mas essa decisão precisa vir dela, e não de uma questão física ou de uma imposição social.

Agora, quando existe falta de desejo, é importante tentar entender o que está por trás disso, porque muitas vezes é possível resgatar esse interesse e, com ele, melhorar a qualidade de vida como um todo.

E o que costuma estar por trás dessa perda de desejo sexual?

Do ponto de vista biológico, há mudanças hormonais. A mulher passa a produzir menos testosterona, deixa de produzir estrogênio. Isso pode impactar a libido, embora não seja uma regra. Cada caso é um caso.

Além disso, tem o processo natural de envelhecimento, que muitas vezes vem acompanhado de uma piora da autoimagem. Às vezes, ela também está num relacionamento de décadas, já desgastado. Os filhos saíram de casa e o casal agora se vê frente a frente, com conflitos que ficaram em segundo plano por muito tempo.

Ela ou o(a) parceiro(a) pode estar passando por outras situações, como perda de emprego, dificuldade de recolocação, doenças próprias ou dos pais, que envelhecem e passam a demandar cuidados. São muitas variáveis. Por isso, não dá para dizer simplesmente que “ela deveria” ou “não deveria” ter interesse sexual. O desejo está inserido em um contexto muito mais complexo, que envolve emoções, hormônios, qualidade da relação, comunicação…

A saúde mental também pode não sair ilesa.

Sem dúvida. A queda no estrogênio que acontece na menopausa pode desencadear depressão, especialmente em mulheres com predisposição genética. Isso porque são justamente nos momentos em que os níveis de estrogênio estão mais baixos — como a fase pré-menstrual, a gestação, o pós-parto e a menopausa — que elas tendem a apresentar sintomas depressivos.

E nem sempre a depressão se apresenta da forma clássica. Existe a chamada depressão atípica, em que a mulher pode comer mais em vez de comer menos, dormir demais em vez de ter insônia. Isso, somado às mudanças hormonais, de estilo de vida e à própria vulnerabilidade emocional, pode levar ao ganho de peso, afetando a autoestima e, consequentemente, o desejo sexual.

A dinâmica em casal também sofre transformações. Muitos casais viveram anos com uma vida sexual satisfatória. E, de repente, a mulher perde o interesse ou começa a sentir desconforto — às vezes nem consegue elaborar direito o porquê. O parceiro, sem entender o que está acontecendo, pode reagir com ansiedade, frustração… e isso também impacta a saúde emocional dos dois. Mesmo quando a conversa sobre a menopausa acontece pode haver falta de entendimento — ou até de aceitação — por parte do outro.

Por outro lado, há mulheres que mantêm o ritmo sexual. Existem muitas variáveis, e cada uma vive esse processo de um jeito. Mas, nessa fase, estamos falando de uma mulher muito mais exigente. Ela já se provou, já conquistou muita coisa e agora quer qualidade.

Ao mesmo tempo, o parceiro também pode estar atravessando um momento de maior vulnerabilidade, inclusive em relação aos hormônios — com medo de falhar, enfrentando dificuldades com ereção, por exemplo. E aí, na tentativa de evitar a falha, ele pode apressar o ato, deixando de lado as preliminares de que ela precisa para se interessar. Isso também pode gerar conflitos emocionais para ambos.

A senhora falou sobre o ganho de peso. Como ele se conecta com a menopausa?

Ganho de peso não é, necessariamente, sinônimo de menopausa. Mas é muito comum a mulher, ao entrar no climatério — que é esse período em que o corpo vai deixando de produzir estrógeno —, começar a perceber que engorda comendo a mesma coisa de antes. Ou seja, manter o peso vira um desafio maior.

E aí a gente se pergunta: por quê? Será que é só a mudança hormonal? Ou será que essa fase da vida, apesar de menos corrida no sentido físico, pode ser mais pesada emocionalmente? Muitas mulheres enfrentam ansiedade, depressão e acabam comendo mais — e tendo mais dificuldade de manter o peso.

Então não é só uma coisa. São vários fatores ao mesmo tempo: alterações hormonais, mudanças no estilo de vida, questões emocionais… Tudo isso junto exige mais atenção com a saúde e com o peso nessa fase da vida, principalmente para quem já tem sobrepeso ou obesidade, que, vale ressaltar, é uma doença e pode desencadear outras.

E quando falamos de libido, menopausa, a reposição hormonal pode ajudar?

Pode, sim. Mas é importante olhar caso a caso. Não dá para dizer que terapia hormonal é sempre boa ou sempre ruim. O que precisamos lembrar é o seguinte: com o aumento da expectativa de vida, a mulher hoje passa praticamente metade da vida na menopausa. Se o corpo produz hormônio até os 45, 50 anos, o que acontece com os outros 40, 50 anos sem esse hormônio?

Não é só sobre libido. É também sobre memória, saúde dos ossos, dos músculos, da pele… E tem mais: ninguém consegue ter uma vida sexual satisfatória sem lubrificação. E isso pode ser um problema ainda maior em quem tem sobrepeso ou obesidade, porque o risco de desenvolver diabetes aumenta — e o diabetes mal controlado afeta os nervos, os vasos e, com isso, também a lubrificação vaginal.

Então a conta não fecha: a mulher já está na menopausa, naturalmente com menos lubrificação, e ainda pode ter o agravante do diabetes atrapalhando mais ainda. Resultado? Dor na relação, desconforto e, muitas vezes, abandono da vida sexual.

A reposição de estrógeno pode ajudar muito nesses casos, tanto na lubrificação quanto na preservação de outras funções, mas sempre com avaliação médica, para que o profissional avalie o quadro como um todo: entender se os sintomas vêm mesmo da falta de hormônio, se têm fundo emocional, psicológico ou se estão associados a outras condições, como a própria obesidade. E, se a reposição for o melhor caminho, pesar os prós e contras com cuidado.

Mesmo com reposição, o corpo responde da mesma forma?

Entre o climatério e a pós-menopausa, é comum que a frequência da atividade sexual diminua. Mas isso não significa que o desejo desaparece. Ele só passa a conviver com outras prioridades: carreira, família, projetos pessoais… E tudo bem.

O ponto não é tentar reviver o que era antes, mas construir uma nova rotina de prazer, com o corpo e o contexto de agora. Quando há saúde física e emocional, o sexo continua fazendo parte da vida — ainda que com menos frequência ou com um repertório mais enxuto.

A queda do estrogênio reduz a lubrificação natural da vagina, e o ressecamento pode atrapalhar bastante. Nesse caso, existem alternativas: além da reposição hormonal (tópica ou sistêmica), é possível usar hidratantes e lubrificantes vaginais. O ideal é conversar com o ginecologista para entender o melhor caminho.

Além disso, manter hábitos saudáveis faz diferença: exercícios físicos regulares, sono de qualidade, alimentação equilibrada, menos álcool, nada de drogas. Fisioterapia do assoalho pélvico também pode ajudar. E vale lembrar que certos medicamentos, como antidepressivos ou anti-hipertensivos, podem interferir na libido. Se for o caso, dá para discutir ajustes com o médico.

Outro ponto importante: não dá para ignorar que o parceiro ou a parceira também pode estar passando por transformações, como queda de desejo ou disfunção erétil. A vida sexual nessa fase é uma construção conjunta. Cuidar da saúde sexual é, muitas vezes, uma tarefa a dois.

Hoje em dia vemos pessoas usando testosterona e os tais “chips hormonais” como se fossem solução para tudo, desde libido até melhora na disposição e na aparência. E tem até médico chamando isso de “reposição hormonal”. Esse cenário preocupa?

Preocupa e muito. Precisamos separar bem as coisas. Quando falamos de testosterona para mulher, existe uma única indicação aprovada pela Anvisa, pelos principais guidelines internacionais e também pela Febrasgo, que é a Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia: mulheres na menopausa ou pós-menopausa que têm queda no desejo sexual comprovada e que não melhora com outras abordagens.

Fora isso, não tem indicação. Não é para todo mundo, nem é tratamento universal para “melhorar libido” ou “ganhar disposição”. E, mesmo nesse caso em que pode ser usada, tem de passar por uma avaliação cuidadosa. O médico precisa investigar se a testosterona não vai trazer riscos, como piorar alguma condição pré-existente ou aumentar a chance de doenças, inclusive câncer. Então, não é só querer usar e pronto.

E tem outro ponto importante: às vezes o problema nem é hormonal. Tem mulher que acha que perdeu o desejo, mas, na real, está num relacionamento que já não faz mais sentido. Não é que ela não quer transar — ela não quer transar com aquela pessoa. Isso é diferente de uma disfunção sexual.

Além disso, se a mulher for precisar da testosterona, o que raramente acontece, ela precisa estar com os níveis de estrogênio equilibrados também, senão ela fica só com hormônio masculino circulando, o que é totalmente fora do que o corpo dela precisa.

A medicina está preparada para lidar com mulheres que desejam manter o desejo sexual aceso, especialmente aquelas que estão na menopausa ou passaram por ela?

A medicina avançou muito em questões de menopausa. Mas temos de entender que temos muito pouco tempo de mulheres na menopausa. As mulheres morriam antes. O que a medicina sabe sobre menopausa vem de mulheres que começaram a viver além dos 50 anos, e isso é recente, de algumas décadas para cá.

Então, a medicina precisa agora, cada vez mais, se aprofundar no estudo dessas mulheres que vivem 60, 70, 80, até 100 anos. Não sei se o melhor termo seria esse, mas elas são, de certa forma, sobreviventes. Sobreviventes porque antes elas nem existiam. Até 1900, a mulher não vivia além dos 50 anos.

Não conhecíamos esse grupo tão bonito de mulheres que continuam ativas, interessadas na vida — e que ainda vivem mais que os homens. Hoje, a mulher vive em média sete anos a mais. E, se vamos viver mais, por que não viver com qualidade? O desejo sexual, claro, entra nessa conta.



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